Gustavo Diógenes, o “Hopper do sertão”

Gustavo Diógenes, o


Na noite escura, ninguém na rua, apenas uma moto estacionada. Uma luz, que deve vir de um poste fora da cena, ilumina o veículo e projeta uma sombra comprida. Ao fundo, a igreja de fachada branca e simples brilha iluminada. Essa cena está retratada na tela Ronda Noturna, assinada por Gustavo Diógenes.

A obra está entre as 11 telas apresentadas pela galeria Leonardo Leal na terceira edição da ArPa, a feira de arte contemporânea realizada em junho, na capital paulista. Nove delas e mais duas que estavam guardadas foram vendidas em apenas cinco dias de evento.

Diógenes dividia o estande com o artista Thadeu Dias, ambos cearenses. E a mostra foi batizada  Chiaroscuro sob o sol. “Eu quis trazer para a feira algo que está fora do que está sendo visto”, conta o galerista Leonardo, em conversa com o NeoFeed. Era como o yin e o yang.

As obras de Dias representavam o mar, as praias, a luz do sol a pino, enquanto as de Diógenes traziam o oposto: a rota rumo ao sertão. A solidão e os ambientes vazios, como ruas, bares e postos de gasolina, são temas constantes na pintura desse artista de 40 anos.

O trabalho de Diógenes traz imediatamente à lembrança o americano Edward Hopper (1882-1967). “Gosto do trabalho dele, do enquadramento, de como ele usa a perspectiva, a noção de planos”, diz, em entrevista ao NeoFeed. “Acho que a comparação com o meu trabalho tem mais a ver com a sensação de isolamento. É ótimo ser comparado com um grande artista.”

Na obra de Hopper, o predomínio é da luz diurna e a pintura, muito cuidadosa, lisa, em que a marca do pincel praticamente não aparece, destaca Diógenes.

Em seu trabalho, o desenho da pincelada fica um pouco mais evidente, o que não o impede de atingir a atmosfera metafísica do pintor americano. Diógenes adora road movies brasileiros, como O Céu de Suely, de Karim Aïmouz, e Viajo porque preciso, volto porque te amo, de Aïmouz e Marcelo Gomes. Essas são suas verdadeiras referências estéticas, que trazem também um quê de lembrança afetiva.

As viagens de carro com a família, pelo interior do estado, estão vívidas em suas memórias. Além de Fortaleza, onde mora atualmente, devido ao trabalho do pai na Companhia Energética do Ceará, na infância, o artista viveu em cidades como Limoeiro do Norte e Quixadá, a cerca de 200 e 170 quilômetros da capital Fortaleza, respectivamente.

Os bares de beira de estrada

O gosto pela estrada, contudo, prevaleceu na vida adulta. Para abastecer seu repertório de imagens, Diógenes gosta de se lançar na estrada, sem muito destino certo, de ônibus ou de carro.

“O sertão cearense eu conheço bem”, afirma. “Durante essas viagens, surgem ideias, e eu saio fotografando tudo o que me interessa.”

O que lhe chama atenção são rodoviárias, bares de beira de estrada com cadeiras de plástico, postes iluminando ruas escuras, bois perdidos no meio de uma rodovia e motos estacionadas em locais desertos.

“Tenho muito apreço por esses ambientes populares. Quando vejo um bar meio inóspito na beira da estrada, sempre paro para tomar uma cerveja ou uma cachaça”, conta. “Esses locais me enchem de uma energia que eu não sei explicar exatamente. São lugares que me atraem de uma forma que não consigo definir.”

Diógenes leva a energia desses espaços para suas telas. A partir da memória ou da fotografia, ele usa suas habilidades como ex-diretor de arte no mercado publicitário para dar cor e um pouco mais de tensão e mistério a esses cenários.

“Tenho muito apreço por esses ambientes populares. Quando vejo um bar meio inóspito na beira da estrada, sempre paro para tomar uma cerveja ou uma cachaça”, conta Diógenes (Crédito: Flavia Almeida)

Para o pintor cearense, a comparação de sua obra com a do americano Edward Hopper vem sobretudo da “sensação de isolamento”, que o estilo de ambos transmite. Na imagem a tela “Nigthhawks”, pintada pelo americano em 1942 (Crédito: Reprodução artic.edu)

Diferente das telas de Hopper, nas pinturas de Diógenes, as pinceladas são evidentes — tela “Anoitecer na matriz” (Crédito: Divulgação)

As viagens de carro com a família, pelo interior do Ceará, estão vívidas nas lembranças de Diógenes — tela “Paisagem noturna em São Gonçalo do Amarante ” (Crédito: Divulgação)

Diógenes chegou a trabalhar em agência de publicidade, mas a arte era seu destino — obra “Sem título”, da ´serie “Fogo fátuo” (Crédito: Divulgação)

Um dos “road movies” brasileiros que inspiram Diógenes é “Viajo porque preciso, volto porque te amo”, de Karim Aïmouz e Marcelo Gomes (Crédito: Reprodução themoviedb.org)

Sua vida como artista em tempo integral é relativamente recente. Até cerca de dois anos atrás, dividia a carreira em agência com o desejo de se dedicar apenas à arte.

Criativo e com talento para desenho, foi aconselhado pelo pai a cursar publicidade. Logo na faculdade, porém, descobriu que não era aquilo que queria para sua vida. Diógenes era colega da filha do pintor Cláudio César e, quando visitou a casa da amiga, não teve dúvidas: a pintura era seu destino.

“Eu me apaixonei pelo estilo de vida mesmo. Aquela casa cheia de esculturas, cerâmicas, pinturas, tintas, pincéis… Foi algo que me absorveu”, diz. Aproveitou o encontro com o artista e perguntou o que poderia fazer para se tornar um. César recomendou que buscasse uma técnica para se dedicar.

A ausência que indica presença

Diógenes procurou um professor de pintura que lhe deu as primeiras aulas. Como bom discípulo, estudou os grandes mestres. Entre seus escolhidos estavam os barrocos italianos Caravaggio (1573-1610) e Tintoretto (1518-1594).

Ele lembra de não se preocupar muito com o autor, mas sim com o tema e com a forma. “Eu realmente gostava muito de evoluir como pintor, e fiquei durante uma época meio aprisionado, com uma ideia fixa de buscar um formalismo técnico”, lembra.

Estudar gravura foi o caminho encontrado para se soltar e treinar outras habilidades. “A gravura mostrou que dá para trabalhar a imagem com manchas de cor e outros traços interessantes”, ressalta. Diógenes também foi estudar artes no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), onde está concluindo neste ano a licenciatura.

Até começar o curso no IFCE, Diógenes se dizia um “pintor aprisionado”. “Eu executava muito bem uma pintura, mas era só aquilo. Não havia mais nada para apreciar, não havia sentido poético”, diz.

Ao estudar história da arte e arte contemporânea, Diógenes entendeu que sua pintura também poderia refletir um pensamento, uma estética própria e seu olhar sobre o mundo.

As pinturas dos lugares que fazem parte da rotina surgiram então em suas telas, como um bar que frequenta desde muito jovem.

Na imagem, o ambiente aparece sem as pessoas que costumam se encontrar lá. Há apenas uma cadeira na calçada, como se estivesse à espera de alguém. A pintura, de 2019, chama-se Duas doses de saudade.

“Foi quando eu entendi que a ausência também indica uma presença”, reflete. “Quando há mistério, vemos mais coisas do que se colocarmos uma figura humana.”





Fonte: Agência Brasil

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