Não faz muito tempo, para a ciência e a medicina, o sexo feminino não passava de um arremedo (mal-ajambrado) do masculino. Exceto pelos órgãos reprodutores, os corpos das mulheres e dos homens funcionariam da mesma forma.
Sob o pretexto de que seria difícil controlar os efeitos do ciclos de fertilidade delas e, de forma a eliminar o maior número possível de “fatores de confusão” dos experimentos, o corpo ideal para estudo em laboratório seguiu sendo o do macho — o rato, o macaco, o homem.
O descaso produziu tragédias. Uma das mais notórias, a da talidomida. Lançado nos anos 1950, como sedativo, o medicamento logo passou a ser usado contra enjoo matinal por gestantes. E muitas dessas mães deram à luz crianças com má-formação. E por quê? O remédio jamais fora testado em cobaias fêmeas, muito menos prenhas.
A ciência e a medicina avançaram, nos últimos anos, claro, mas doses padronizadas de medicamentos continuam a ser ministradas em homens e mulheres, apesar dos indícios de que possam afetar de forma diferente os dois sexos.
Uma mulher, por exemplo, tem mais risco de morrer vítima de um infarto do que um homem, embora a probabilidade dela ela infartar seja menor.
Como os sintomas variam conforme o sexo, nem ela nem os médicos, em geral, ainda estão preparados para diagnosticar o problema a tempo de salvá-la.
Mas não só isso. Fora do âmbito das patologias, por que as mulheres tendem a acumular mais gordura na região dos quadris? Por que elas são mais longevas e resistentes à dor? Por que menstruam e entram na menopausa?
Por uma década, a americana Cat Bohannon, de 44 anos, PhD em evolução da narrativa e da cognição, pela Universidade Columbia, se debruçou sobre essas questões. O resultado de seu trabalho está no livro Eva — Como o corpo feminino conduziu 200 milhões de anos de evolução humana. Editado pela Companhia das Letras, é um dos lançamentos mais fascinantes (e corajosos) do ano.
Recebida como uma obra revolucionária, nos Estados Unidos, Eva propõe um novo olhar para a evolução humana. Faz uma correção (urgente e necessária) de uma história centrada no corpo masculino cisgênero.
As ferramentas de pedra, o fogo e a ginecologia
Nas 616 páginas de seu livro de estreia, Cat apresenta curiosidades surpreendentes de como o corpo feminino moldou o nosso desenvolvimento enquanto espécie. E não há nada de feminista na teoria da autora. Ela recorre o tempo todo à ciência para fundamentar sua tese.
Conta como o corpo feminino foi imprescindível para que nossos ancestrais dessem os primeiros passos como bípedes. Explica como a saliva do recém-nascido tem o poder de não só estimular o corpo da mãe a produzir leite, mas como adaptar os nutrientes do alimento às necessidades específica do bebê.
Discorre sobre o porquê de as mulheres terem o olfato mais sensível, especialmente no período da ovulação e da gravidez. A audição mais apurada nas altas frequências, a visão mais alargada das cores, a expectativa de vida meia década mais alta, em média, do que os homens — 80% dos centenários do planeta são do sexo feminino. Isso explica muito do comportamento feminino, não é mesmo?
Como as ferramentas de pedra e o fogo, para Cat, a ginecologia foi uma das invenções mais cruciais para a evolução da humanidade. Não fossem os conhecimentos sobre partos, tratamentos de infecções e regulação da fertilidade, não teríamos chegado até aqui.
No fundo, o que qualquer espécie precisa é garantir a sobrevivência de seus descendentes — e, portanto, de quem os gera e cuida. Essas “descobertas” (ou seriam informações ignoradas propositadamente, durante séculos?) são descritas pela autora com humor afiado.
“Temos que colocar o corpo feminino em cena. Se metade de nós tem seios, então é hora de falarmos sobre seios, sangue, gordura, vaginas, e úteros — tudo isso, como surgiram e como vivemos com eles agora, não importa quão estranha ou hilariante é a verdade”, escreve ela.
Testículos e ovários
“Como temos aprendido cada vez mais, corpos femininos não são apenas corpos masculinos com “coisas a mais” (gordura, seios, úteros). Tampouco testículos e ovários são intercambiáveis. Ser sexuado permeia todos os aspectos importantes de nossos corpos de mamíferos e da vida que levamos dentro deles, tanto no caso dos camundongos quanto no dos seres humanos”, completa.
Para dimensionar nossas ancestrais no lugar que lhes é devido na história da evolução da espécie, Cat “reescreve” a primeira cena do clássico de sci-fi 2001: Uma odisseia no espaço, filme de Stanley Kubrick, lançado em 1968.
A autora substitui o homem primitivo, inventor primordial das armas, em uma cena encharcada de testosterona, na qual criaturas peludas grunhem e se batem com pedaços de ossos, pela mulher que afiava as ferramentas e zelava pela prole — depois de tê-la parido.
Uma das inspirações para Eva foi outra ficção científica — Prometheus, prequel de Alien, de 2012, do cineasta Ridley Scott. Em uma cena, a arqueóloga Elizabeth Shaw, interpretada por Noomi Rapace, engravida involuntariamente de uma lula alienígena.
Ela precisa se livrar daquela criatura e pede ao robô-médico que a submeta a uma cesariana. “Erro”, responde a máquina. “Este módulo está calibrado apenas para pacientes do sexo masculino.”
A pesquisadora faz questão de frisar: “Não que praticantes de ciência de alto coturno ainda achem que os corpos femininos foram criados quando Deus tirou uma das costelas de Adão, mas a pressuposição de que ser sexuado/a é uma questão que se limita aos órgãos sexuais — de que ser do sexo feminino é de alguma maneira apenas um ajuste mínimo numa forma platônica — é meio parecida com essa antiga história bíblica. E essa história é mentira”.
Como lembra no livro, muitos ainda têm dificuldade para reconhecer que sexo biológico é fundamentalmente diferente da identidade de gênero, o que já está aceito por grande parte da comunidade científica.
E, compreender a biologia das diferenças sexuais vai ajudar a todos — homens cis, homens trans, mulheres cis e mulheres trans.