A aprovação da lei que regulamenta a reforma tributária na Câmara dos Deputados serviu para agradar lobbies, teve um viés eleitoral ao liberar uma série de benefícios e, na prática, empurrou com a barriga um problema que vai ter de ser resolvido em 2033.
A razão? A partir de 2033, os deputados estipularam que a alíquota padrão do IVA (Imposto sobre Valor Agregado), o novo imposto único a ser criado em substituição ao modelo atual, terá de ser de 26,5%.
O problema é que, ao aprovar o texto, os deputados concederam isenções a diversos itens. Um dos destaques, por exemplo, incluiu as carnes na lista de produtos da cesta básica nacional que terão alíquota zero, colocando um ponto final a uma interminável polêmica que rondou as discussões na última semana.
A inclusão da carne vai elevar a alíquota padrão em 0,57 ponto percentual, para 27,07% – acima do IVA de 26,5%. Dessa forma, outro destaque aprovado determinou que o Executivo terá de enviar um projeto de lei complementar revisando os benefícios ou descontos na alíquota para determinados bens e serviços.
Na prática, o plenário da Câmara dos Deputados jogou para frente a obrigação de manter a alíquota padrão em 26,5% e ainda faturou politicamente ao isentar as proteínas animais de imposto às vésperas da eleição municipal.
O presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (Republicanos-AL), admitiu que a aprovação da trava da alíquota de 26,5% foi uma solução encontrada para bancar a inclusão das proteínas na lista de isenção da cesta básica.
“A isenção tributária da proteína vai causar um impacto grande na alíquota, mas o que deu mais conforto foi essa trava que foi colocada no texto”, disse. “Se bater perto dos 26,5% vai ter que ter alteração, vai ter que se rever com tempo.”
Para Felipe Salto, economista-chefe da Warren Investimentos, a aprovação dessa trava de 26,5% na alíquota é “um assassinato à matemática básica”, que serviu de compensação à lista de exceções de isenções aprovadas pelo texto-base.
O economista-chefe da Warren e ex-Secretário da Fazenda e Planejamento do estado de São Paulo em 2022 comparou a aprovação da trava à ideia de tabelar juros, que fora introduzida na Constituição de 1988, mas depois retirada pela Emenda 40, de 2003.
“Se aumento agora o número de exceções, como posso garantir os mesmos 26,5% calculados pelo próprio governo antes das mexidas da Câmara?”, questiona. “Vai ser uma confusão completa, estamos indo sem atalhos para o abismo.”
De acordo com Salto, a profusão de exceções e particularidades garantidas no texto do projeto de lei complementar aprovado tornará o sistema mais complexo e extremamente convidativo ao aumento do contencioso.
“Se eu fosse um dos idealizadores da antiga PEC 45 não reconheceria mais o meu filho”, acrescenta, referindo-se ao projeto de emenda constitucional de 2019 que inspirou a atual reforma.
O tributarista, André Felix Ricotta de Oliveira, coordenador do curso Tributação sobre o Consumo do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET), diz que a polêmica se deve a uma falha da reforma, que foi fatiada.
“A atual fase cuidou apenas dos tributos sobre consumo, deixando os tributos sobre renda e patrimônio para depois, e o governo não quer perder poder de arrecadação, daí a dificuldade de manter a atual carga”, diz Ricotta.
Profusão de benefícios
O problema de chegar a uma alíquota de 26,5% em 2033 fica mais difícil ainda quando se observa a quantidade de benefícios concedidos de última hora incluídas pelo relator na véspera da votação de quarta-feira, 10 de julho.
Algumas alterações foram elogiadas, como a do cashback – mecanismo de devolução de imposto que beneficia famílias com renda per capita de até meio salário-mínimo e inscritas no CadÚnico.
O texto aumenta o percentual de devolução da CBS (futuro imposto federal sobre consumo) para energia elétrica, água, esgoto e gás natural. Originalmente, seriam devolvidos 50% do tributo pago. A nova versão devolve os 100% da CBS.
Outra mudança refere-se aos remédios populares, incluídos na lista de produtos com alíquota reduzida de 60%. Além deles, foi mantida uma lista de 383 remédios isentos de tributação.
Os planos de saúde corporativos também foram beneficiados. A alteração no texto-base autoriza créditos de IBS e CBS para as empresas que adquirirem para seus funcionários planos de saúde coletivos. Sem essa alteração, os planos de saúde teriam de pagar alíquota cheia (hoje são isentas) – o que poderia fazer com que milhões de brasileiros perdessem o benefício.
A força dos grupos de pressão também rendeu vitórias para vários setores. Houve até uma disputa à parte para saber qual setor obteria mais benefícios – vencida pelo agronegócio, que emplacou nada menos que 18 sugestões no relatório final. Além do grande troféu – a inclusão da das proteínas animais na lista de isenção da cesta básica – o setor obteve desconto de 40% na alíquota do salmão, por exemplo.
O setor automotivo se destacou pela quantidade de benefícios obtidos. As montadoras do Nordeste (Stallantis e BYD), na última hora, asseguraram acesso a um crédito presumido (a ser abatido do imposto pago na venda de automóveis) para os veículos produzidos no período de 2027 a 2032. Em vez de 8,7% de benefício tributário, como propôs a Fazenda, as montadoras da região terão um benefício de 14,5%, quase o dobro.
Outra vitória – muito criticada por especialistas – foi o de excluir os caminhões movidos a diesel da lista de Imposto Seletivo (IS), o “imposto do pecado”, para produtos que fazem mal à saúde e ao meio ambiente. O argumento do relator de que uma taxação elevada elevaria o custo dos fretes se sobrepôs ao dano ambiental causado pela emissão de diesel dos caminhões.
Em contrapartida, os carros elétricos – com emissão zero de gases de efeito estufa – foram penalizados na reforma, incluídos na lista do IS. “Apesar de o carro elétrico não emitir poluentes, a destinação final de sua bateria causa problemas ambientais, o que até justificaria sua inclusão na lista de IS”, diz um tributarista com atuação em Brasília que não quis se identificar. “O problema é o caminhão fora de lista do imposto do pecado, uma aberração.”
Segundo esse tributarista, a questão dos carros elétricos versus caminhões deve levar à judicialização no médio prazo. “O que está em jogo é o princípio da igualdade, isso vai estourar em 2026 e 2027, quando as novas regras começarem efetivamente a entrar em vigor.”
O tributarista cita também a forte ação do lobby do setor de comércio para manter benefícios do Simples Nacional e assegura que a versão final do texto aprovada na noite de quarta difere muito pouco do que estava sendo costurado nos bastidores nas últimas semanas.
“Estava tudo pronto, as audiências públicas, as discussões das frentes parlamentares e de deputados eram apenas para passar a impressão que houve intenso debate”, acrescenta. “Mesmo porque o esqueleto da Emenda Constitucional 132, aprovado em dezembro pelo Congresso e que serviu de base para a atual votação, impedia novas isenções.”
O projeto que regulamenta a reforma tributária segue para o Senado, onde será votado no segundo semestre, sem a celeridade do processo conduzido pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL). O próximo passo dos deputados será a discussão da criação do Comitê Gestor que será criado com a reforma.