Semifinal da Copa do Mundo de 1986, 25 de junho. Cerca de 115 mil espectadores lotam o estádio Azteca, no México, para assistir Argentina e Bélgica. O primeiro tempo termina em 0 a 0. A partida recomeça e a disputa segue acirrada. No 51º minuto, Diego Maradona faz um gol. Doze minutos depois, outro. A seleção sul-americana está classificada para a final contra a Alemanha.
Jogo encerrado, Maradona troca sua camisa pelas luvas do goleiro Jean-Marie Plaff, com a dedicatória: “Para el simpatico, Jean Marie com todo mi cariño, Diego”.
Passados 38 anos do jogo e quatro da morte do argentino, o atleta belga decide levar o presente a leilão, a ser realizado, no início de agosto, pela Sotheby’s, em Nova York. Nas estimativas dos organizadores, a peça deve atingir entre US$ 800 mil e US$ 1,2 milhão. Mas, não será surpresa, se alcançar valor ainda mais alto.
A casa de leilões inglesa já vendera outra camisa de Maradona, cujo preço superou as expectativas em US$ 1,5 milhão: a azul, com a qual o meio-campista marcou o lendário gol “Mão de Deus”, nas quartas de final contra a Inglaterra, do mesmo mundial — a Copa de 1986, aliás, foi a Copa dele, El Pibe de Oro, como era conhecido.
Em maio de 2022, quando a batida do martelo soou para o lance de US$ 9,3 milhões a veste foi alçada à memorabilia esportiva mais valiosa do mundo. Não duraria muito tempo, porém.
Três meses depois, uma “figurinha” de 1952, autografada pelo jogador americano de beisebol Mickey Mantle, tirou a camisa de Maradona do topo do ranking, ao ser vendida por US$ 12,6 milhões., em um evento da Heritage Auctions.
No “mercado das recordações” é assim mesmo. Um recorde atrás do outro, onde a posse de um objeto raro, exclusivo e único alimenta a vaidade e os lances estratosféricos (e anônimos) dos HNWIs, os high net worth individuals — em bom português, os ultrarricos.
O que são US$ 4,6 milhões para ser “o” dono do vestido branco e esvoaçante de Marylin Monroe, no filme O pecado mora ao lado, de 1955? Ou US$ 8 milhões pelo privilégio de possuir os seis tênis (sem seus pares), com os quais Michael Jordan conquistou os seis títulos da NBA? Ou ainda US$ 3 milhões para ser a única pessoa do planeta a ter o violão Framus Hootenanny, de 12 cordas, usado por John Lennon para gravar os álbuns Help! e Rubber Soul?
Globalmente, os leilões de memorabilia movimentam hoje US$ 61 bilhões. Mas, até 2031, devem girar US$ 106,2 bilhões. A taxa de crescimento anual composta prevista para o período, segundo a consultoria americana Market Research, é de 8,25%. Uma consistência superior à do mercado de arte.
Depois de dois anos de crescimento, em 2023, por causa dos juros altos, a inflação, a instabilidade econômica e política, entre os principais fatores, as vendas globais de obras de artes despencaram 4% e foram avaliadas em US$ 65 bilhões, conforme relatório da organização Art Basel, produzido em parceria com o banco UBS.
“Don’t stop me now”
Enquanto isso, o aperfeiçoamento das tecnologias de autenticação e o apelo emocional levam os chamados colecionáveis às alturas.
Nada ilustra a efervescência dos negócios de memorabilia com tanta perfeição quanto o frenesi em torno da venda, no ano passado, do espólio de Freddie Mercury.
Em setembro, na sede da Sotheby’s em Londres, por quatro horas e meia, 2 mil compradores, de 61 países, deram 41,8 mil lances na disputa por uma lembrança da vida e da carreira do líder do Queen — 60% deles eram clientes de primeira viagem da casa de leilões inglesa.
De joias a roupas, de objetos de higiene pessoal a instrumentos musicais, de manuscritos a móveis, os 60 lotes renderam US$ 50,4 milhões — contra os US$ 11,3 milhões projetados pelos organizadores.
Talvez um dos objetos mais simbólicos da explosão das expectativas seja o pente de bigode do músico. De prata, foi vendido por cerca de US$ 200 mil, quando o esperado era, no máximo, US$ 715. Sim, 28 mil vezes acima do estimado!
A quantidade de contato
Ostentar artigos que, no passado, pertenceram a alguma celebridade é motivo de orgulho e prazer. Mas, não só isso. A disposição para investir fortunas em memorabilia passa também pelo campo do pensamento mágico.
Pesquisadores da Universidade Yale, nos Estados Unidos, explicam o fascínio despertado pelos colecionáveis com a teoria do contágio.
“Algumas pessoas acreditam que as qualidades imateriais ou a essência de alguém podem ser transferidas para um objeto, por meio do contato físico”, explicam Paul Bloom, professor de psicologia e ciência cognitiva, e George Newman, de comportamento organizacional, em artigo publicado na revista científica Proceedings of the National Academy of Sciences.
Assim, quanto maior o contato do famoso com o artigo, maior a valorização do item.
Depois de analisar os dados dos leilões do espólio do ex-presidente John F. Kennedy e Jacqueline Onassis, de Marylin Monroe e do golpista Bernie Madoff e sua mulher Ruth, a dupla propôs um exercício de imaginação a um grupo de voluntários.
Quantos eles estariam dispostos a pagar pelo suéter de um famoso por quem tivessem simpatia? E, se a peça pertencesse a uma personalidade que julgassem desprezível?
Em seguida, o que mudaria caso a roupa tivesse sido esterilizada? Os participantes pagariam 14% a menos pelo pulôver da celebridade querida. E, 17% a mais pelo casaco da desprezível.
As cinzas de Capote
Mas sempre surpreende a venda de objetos mórbidos, alguns marcados por histórias de ódio e violência — o que suscita um debate mais profundo sobre moral e ética. Vários países europeus, como França e Alemanha, proíbem, por exemplo, os leilões de memorabilia nazista.
Em 2023, em um evento da Heritage Auctions, em Dallas, 40 pessoas disputaram a porta do número 10050, da Cielo Drive, em Los Angeles.
Naquele endereço, na noite de 9 de agosto de 1969, a atriz Sharon Tate, aos 26 anos, grávida de oito meses, foi morta a facadas por Charles Manson e seus asseclas. Pois é… o lance vencedor levou a porta por US$ 127 mil — a cotação inicial não ultrapassava US$ 4 mil.
A pedido de Yoko Ono, Darren Julien, fundador e CEO da Julien’s Auctions, suspendeu o leilão do álbum Double Fantasy, autografado por Lennon, poucas horas antes de morrer. “John Lennon, 1980. Devolvendo” foi a dedicatória bem humorada do ex-Beatle para David Chapman, seu assassino. O LP, no entanto, foi parar na Goldin Auctions e alcançou, em 2020, US$ 1,5 milhão.
Com os restos mortais do escritor e roteirista Truman Capote, Julien até ficou em dúvida, mas acabou levando-os a leilão: “Ele [Capote] adorava publicidade. E tenho certeza de que está olhando aqui para baixo, rindo e dizendo: ‘Isso é algo que eu teria feito”, conta o empresário, à revista americana The New Yorker.
E, assim, o punhado de cinzas do autor de A sangue frio e Bonequinha de luxo, guardado em uma caixa japonesa, foi descansar em outras paragens por US$ 43,75 mil.
Um investimento alternativo
Movimentando cada vez mais dinheiro, os leilões de memorabilia começam a atrair um novo perfil de compradores: quem faz das recordações um investimento alternativo, modelo de operação em alta no mercado financeiro global.
“Em 2005, apenas 5% da carteira dos investidores institucionais estava alocada em alternativos. Em 2018, este percentual cresceu para 25% e a perspectiva é de que atinja 40% em 2030”, diz Arthur Farache, CEO da Hurst Capital, ao NeoFeed. “Esses ativos não são tradicionalmente negociados nos mercados financeiros, mas podem apreciar significativamente em valor ao longo do tempo.”
Em 1993, por exemplo, a Christie’s vendeu o casaco de listras roas, amarelas e laranjas, usado pelo ator Dick Van Dyke, no filme Mary Poppins, de 1964, por US$ 4,37 mil. Quase 30 anos depois, a veste alcançou US$ 200 mil, em leilão da Heritage Auctions — valorização de quase 4.480%.