A cena tem se repetido com frequência nos últimos anos nos Estados Unidos. Toda vez que o Gabinete de Orçamento do Congresso (CBO, na sigla em inglês), órgão do Legislativo americano, solta uma atualização da dívida pública dos EUA, a primeira reação é de espanto, seguida de um certo conformismo.
O espanto é pelo crescimento da dívida. O conformismo é atribuído à certeza de que o déficit vai continuar a crescer, no entanto sem causar a mesma preocupação que o tema costuma gerar em outros países, inclusive do Primeiro Mundo.
Foi exatamente o que ocorreu esta semana, quando o CBO anunciou a previsão de que a dívida pública dos EUA vai aumentar 64% nos próximos dez anos, um crescimento inédito e surpreendente. Hoje em US$ 34 trilhões, o déficit americano deverá subir para US$ 56,9 trilhões nas contas do CBO, engordando em US$ 3 trilhões por ano até 2034.
Para se ter uma ideia do salto, o déficit do atual ano fiscal (que acaba em 30 de setembro) é de US$ 1,9 trilhão, equivalente a 6% do Produto Interno Bruto (PIB) dos EUA.
O anúncio evidentemente causou preocupação, ainda mais num país com juros elevados. Mas a possibilidade de o déficit em elevação ameaçar o domínio do dólar como moeda de reserva ou causar um colapso na maior economia do planeta é muito pequena.
Nem mesmo a divulgação de outro indicador, o aumento da relação dívida/PIB, causou comoção. Esse dado indica quanto o país deve versus o que produz e, portanto, até que ponto é capaz de pagar por essa dívida.
O déficit público dos EUA vai fechar 2024 em 99% do PIB, índice que vai aumentar para 122% do PIB em 2034 – ultrapassando o seu anterior máximo, de 106% do PIB em 1946, no final da Segunda Guerra.
Mesmo com esses números superlativos, as campanhas presidenciais de Joe Biden e de Donald Trump não chegam a tocar no tema do endividamento em suas plataformas de governo. Por isso, não surpreende que, das três grandes agências de risco, duas rebaixaram o AAA, nota máxima de crédito de dívida dos EUA.
Impulso
Para Luis Otavio Leal, economista-chefe da gestora G5 Partners, vários fatores explicam esse conformismo. Um deles é a política fiscal expansionista de boa parte dos países para impulsionar a economia interna no pós-pandemia.
“O fato é que a pandemia quebrou o termômetro da economia global, todos os países se endividaram e os mercados ficaram mais lenientes com isso”, diz Leal, citando o exemplo da França, que elevou bastante sua dívida em relação ao PIB se comparado com a Alemanha, outro país da zona do euro.
No caso dos EUA, nem mesmo o crescimento exponencial da dívida pública ameaça impactar a fortaleza do dólar como moeda de referência global.
Segundo Leal, a moeda americana já vinha perdendo força nos últimos anos por motivos geopolíticos – com o congelamento dos ativos russos por causa da Guerra da Ucrânia, países na mira de sanções dos EUA começaram a correr para outros ativos.
“O dólar, que respondia por 80% das reservas mundiais, hoje caiu para 65%, mas as alternativas disponíveis não são seguras”, afirma o economista. Ele cita a China, que tenta emplacar o yuan, mas o governo aumentou o controle estatal sobre a moeda e, a rigor, o país nunca foi um exemplo confiável para o mercado global trocar o dólar pela moeda.
“O euro tem um pecado original que o impede de servir de referência – o bloco europeu tem união monetária, mas não fiscal -, a libra esterlina, atualmente, simplesmente não dá, então sobra o dólar mesmo”, diz Leal.
O impacto da dívida pública americana na economia interna, de acordo com o economista da G5 Partners, também é limitado. Uma parte pode até ajudar a alimentar inflação, mas o que pesa mais no aumento de preços é a política fiscal expansionista do pós-pandemia, que levou a inflação a 9%, índice elevadíssimo para os padrões americanos.
“A crise de 2008, por exemplo, que não teve expansão fiscal, não gerou inflação, aliás, nem todo esse endividamento se deve a isso, os gastos militares maiores também estão contribuindo”, afirma Leal.
O efeito no curto prazo mais preocupante desse endividamento é político: em janeiro de 2025, vence o prazo para o Congresso americano renegociar o teto da dívida.
Em janeiro de 2023, quando venceu o prazo anterior, a divisão no Congresso arrastou a disputa por cinco meses, a ponto de o Tesouro americano ficar ameaçado por falta de liquidez. Mesmo assim, o acordo acabou sendo fechado e a economia seguiu seu curso, sem maiores impactos.
Alerta
Algumas vozes importantes da elite americana, porém, têm demonstrado preocupação com o aumento do déficit e exortado as autoridades a lançarem medidas de contenção – ou pelo menos que estabeleçam um plano sobre como irão reduzir as despesas no futuro.
Entre eles estão o presidente do Federal Reserve, Jerome Powell, o CEO do J.P. Morgan, Jamie Dimon, e o ex-presidente da Câmara Paul Ryan. No início deste ano, num evento no Centro de Política Bipartidária, Ryan descreveu a espiral da dívida como a “crise mais previsível que alguma vez tivemos”, com a qual Dimon concordou veementemente.
Já o CBO advertiu esta semana que os gastos federais de Segurança Social e do Medicare devem crescer mais rapidamente do que a população em geral no próximos anos, agravando o déficit público.
Para Leal, porém, o problema do endividamento público elevado nos EUA acaba sendo neutralizado por uma certeza. “A economia americana é diferenciada, não cansa de surpreender positivamente” diz, lembrando da crise financeira de 2008, em que se esperava uma grande recessão e o país praticamente retomou o nível normal em um ano.
O mesmo aconteceu no pós-pandemia. Mesmo com inflação, dívida e juros elevados, o mercado de ações bate seguidos recordes, puxados pela valorização das empresas tech.
“A expansão da inteligência artificial está levando os EUA a um mundo inexplorado”, afirma Leal. “A S&P 500 agora começa a registrar altas de ações de empresas de outro segmento, de utilities, por causa da demanda por mais energia que os data centers para processar dados de IA vão gerar.”
Em resumo: enquanto a economia dos EUA continuar em ascensão, a impressão é que a questão da dívida será empurrada para debaixo do tapete.