De Saint-Exupéry a Freud, o processo criativo de um dos jovens talentos das artes brasileiras

De Saint-Exupéry a Freud, o processo criativo de um dos jovens talentos das artes brasileiras


“Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas.” Chavão para alguns, mantra para outros, especialmente as misses, é difícil encontrar alguém que não conheça a frase do livro O Pequeno Príncipe, do francês Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944).

Incomum é um artista plástico jovem recorrer à “filosofia” para explicar seu processo criativo, como faz o piauiense Santídio Pereira, de 27 anos.

No capítulo 21, a personagem da Raposa explica ao rapazinho do livro: cativar é criar laços, ter necessidade do outro. E isso só acontece com o tempo, com a convivência, quando o ordinário se torna excepcional.

“Tudo começa comigo sendo cativado por algo no mundo, nesse sentido de O Pequeno Príncipe”, conta Santídio, em entrevista ao NeoFeed. “Vou para um lugar em busca de ser cativado. Desenho, no caderninho, o que me cativou para que se materialize dentro de mim. Depois, no ateliê, elaboro qual a melhor forma de executar o projeto.”

Um conjunto de 30 trabalhos com imagens de plantas e relevos naturais que cativaram o artista nos últimos anos compõe a exposição Paisagens Férteis, em cartaz no Museu de Arte Moderna (MAM), de São Paulo, até 1o de setembro.

Com um colorido vibrante, Santídio imprimiu em grande escala — algumas com mais de 2 metros de altura —, xilogravuras de plantas e paisagens montanhosas, comumente vistas no litoral paulista e no interior de Minas Gerais e São Paulo.

Em vez de uma matriz feita em tábua, a partir de seus conhecimentos de marcenaria, o artista cria módulos soltos de flores, folhas, caules e montanhas. Alguns deles são apresentados como baixos relevos, batizados por ele objetos. “O objeto é uma madeira recortada que se conecta com o espaço, com a parede e não tem necessidade de moldura”, diz Santídio.

Para criar as imagens presentes em suas criações, Santídio diz: não basta ver uma foto ou um desenho botânico. Ele precisa conviver com o que vai levar para sua obra. Em seu ateliê, por exemplo, plantou a coroa de um abacaxi ver crescer a bromélia, de onde brota a fruta.

“A ideia só nasce ao vivo”, afirma. “É, ao observar a paisagem ou examinar uma bromélia, noto detalhes, como uma aranha, os ovos de mosquito, a água, e compreendo seu comportamento. A reprodução não me atrai. O que me atrai é a realidade.”

A necessidade de estar perto da natureza reflete a eterna busca do ser humano por preencher um vazio emocional — tema amplamente discutido pelos psicanalistas Sigmund Freud (1856-1939) e Jacques Lacan (1901-1981), ao qual Santídio também recorre com frequência.

As saudades de casa

Aos 8 anos, o artista se mudou para São Paulo, deixando para trás sua cidade Isaías Coelho (PI). Com a mãe e os três irmãos mais velhos, foi morar na favela do Nove, na Vila Leopoldina. Essa mudança trouxe consigo uma sensação enorme de falta da natureza — dos animais, das plantas, da terra natal.

Antes de ir para a escola, no período da tarde, Santídio e seus irmãos frequentavam as oficinas de esporte e artes do projeto social Instituto Acaia, fundado em 1997, pela artista Elisa Bracher. Ele primeiro frequentou as aulas de marcenaria, depois passou para as de desenho.

“Os professores nos ensinavam a materializar nossas ausências”, afirma. “O que faltava era possível concretizar por meio do desenho, da gravura, da pintura. Se você quer ter uma árvore que viu na infância, desenhe isso. De forma verossímil ou mais abstrata, conforme o nosso desejo.”

Já na adolescência, Santídio começou a frequentar as aulas de história da gravura. Por cerca de dois anos, conviveu com o artista Fabricío Lopez, que o incentivou a inscrever seu trabalho em editais.

Objeto XV, de 2023, é uma das obras da exposição “Paisagens Férteis” (Crédito: João Liberato)

“O objeto é uma madeira recortada que se conecta com o espaço, com a parede e não tem necessidade de moldura”, diz Santídio (Crédito: Ding Musa)

Algumas xilogravuras têm mais de dois metros de altura. Na imagem, obra sem título, de 2022 (Crédito: João Liberato)

“A reprodução não me atrai. O que me atrai é a realidade”, afirma o artista — Sem título, 2022 (Crédito: João Liberato)

“Os professores nos ensinavam a materializar nossas ausências”, diz Santídio, lembrando as primeiras aulas de arte, aos 8 anos — Sem título, 2023 (Crédito: João Liberato)

Aos 13 anos, ganhou o prêmio aquisição da Bienal de Gravura de Santo André. “Eles compraram meu trabalho, deve estar no acervo até hoje. O prêmio me trouxe um prestígio”, conta.

Simultaneamente, também começou a participar do coletivo Xiloceasa, formado em 2005, dentro do Instituto Acaia. Com o grupo, participava de feiras independentes, onde vendia seu trabalho. Mas, Santídio não se reconhecia como artista.

“Não havia o peso de querer ser artista enquanto estudei no Acaia. Os professores não falavam sobre isso. Eles nos ensinavam a materializar nossas ideias, o que podia acontecer na oficina de marcenaria, desenho, pintura ou música”, afirma. “Então, na verdade, eu não queria ser artista, queria apenas me expressar. Não sabia que estava fazendo arte.”

Desde os 15 anos, Santídio trabalhava vendendo frutas no Ceasa. “Minha mãe não exigia dinheiro em casa, então, eu usava a grana para comprar material e aproveitar a programação cultural da cidade, ia ao cinema e a exposições”, lembra.

Aos 18 anos, teve de abandonar o Acaia. Mas antes, com ajuda de Lopez, fez boas impressões de todas as matrizes que produziu enquanto estudou lá. “Foi uma espécie de TCC”, conta.

Fila de espera por um trabalho dele

Para continuar estudando arte, pediu uma bolsa para assistir ao curso do crítico e historiador Rodrigo Naves. Por um período, Santídio foi também assistente do professor na organização das aulas. “Aprendi muito com ele, vendo como ele estudava, escrevia”, diz.

Foi Naves o primeiro a dizer que Santídio era, sim, um artista. Pediu para ver as gravuras do jovem e ficou impressionado: ele poderia vender seu trabalho por dez vezes mais, assegurou o crítico.

Naves apresentou o trabalho do rapaz à Vilma Eid, dona da galeria Estação. E a partir daí foi uma sucessão de bons acontecimentos: ela ofereceu o espaço para uma exposição; um amigo, as molduras; outra amiga, o design do catálogo; e Naves, o texto para a mostra e o catálogo. Assim, em, 2016, aos 19 anos, Santídio fez sua primeira individual.

Vendeu todos os trabalhos e fechou um contrato com Vilma, o que lhe permitiu ser artista em tempo integral e cursar Licenciatura em Artes Visuais. Desde então, não parou mais de produzir e expor, inclusive fora do país.

Já levou suas obras para Paris e Nova York. E seus trabalhos estão em acervos de instituições como Sesc, Pinacoteca do Estado de São Paulo, Museu de Arte do Rio, Fundação Cartier e na Coleção Cisneros, uma das mais importantes do mundo.

E mesmo com todo o sucesso, Santídio avisa: “Não vou me sujeitar ao mercado. Enquanto eu estiver ganhando dinheiro com arte, maravilha. Se um dia meu trabalho parar de vender, eu dou minhas aulas e continuo fazendo a minha arte. Porque é isso que me mantém vivo”.

Na galeria Estação, há fila de espera por uma obra do jovem piauiense.





Fonte: Agência Brasil

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