CANNES – Em uma das entrevistas resgatadas no documentário Elizabeth Taylor: The Lost Tapes, a atriz da Era Dourada de Hollywood perde a cabeça com o repórter. Cansada de ouvir a mesma pergunta, sobre como ela se sentia por ser um símbolo sexual, Elizabeth grita que nunca quis carregar esse título, dando a entender que se trata de um fardo na sua trajetória profissional. “Quero ser julgada como atriz”, desabafa ela.
O momento é um dos pontos altos do documentário, que deixa a própria Elizabeth Taylor (1932-2011) contar a sua história, com surpreendente sinceridade. Há um motivo para isso: a base para o filme foi um material descoberto recentemente pela viúva do jornalista Richard Meryman (1926-2015), no sótão de sua casa.
Daí o subtítulo As Fitas Perdidas do longa, que teve première mundial na 77ª edição do Festival de Cannes, na mostra Cannes Classics, dedicada à memória do cinema.
O longa-metragem foi estruturado a partir dessas mais de 70 horas de entrevistas gravadas em áudio, em 1964, que até então ainda não tinham sido divulgadas na forma original.
Parte do conteúdo serviu para Meryman escrever (como ghost writer) Elizabeth Taylor by Elizabeth Taylor. Feitas durante a preparação para o livro, lançado em 1965, as entrevistas só puderam vir à tona agora, depois de liberadas pelo espólio que administra o legado da atriz.
Revisitado hoje, o material serve de janela para a intimidade e a vulnerabilidade daquela que se tornou uma lenda de Hollywood.
Embora não tragam qualquer revelação bombástica, as fitas contribuem para uma melhor compreensão das dificuldades que Elizabeth enfrentou, em uma época em que a indústria do cinema era muito marcada pelo sexismo.
No documentário, com previsão de lançamento em agosto no canal HBO e na plataforma de streaming Max, é surpreendente perceber as inseguranças de Elizabeth na profissão que escolheu, mesmo que ela já fosse uma das mulheres mais requisitadas do cinema naquela época.
Isso acontecia possivelmente por Elizabeth não contar com o mesmo respeito que os colegas do sexo masculino recebiam.
“Mercadoria que dá dinheiro”
A atriz reclama várias vezes de como a imagem de estrela de cinema a perseguia. Sobretudo por sua beleza exuberante, que impedia que executivos e diretores da indústria a vissem apenas como atriz — o que ela mais queria.
Elizabeth odiava ser tratada apenas como “um rosto bonito”.
Ainda assim, a atriz conseguiu viver personagens memoráveis. Como a esposa presa a um casamento destrutivo em Quem Tem Medo de Virginia Woolf? (1965). Pelo papel de Martha, que usa as palavras com esmero para agredir o marido, ela levou o segundo Oscar de sua carreira.
Ao longo do documentário, fica claro que existia uma distância entre a verdadeira Elizabeth e a figura pública glamourosa, alvo constante de escrutínio da mídia.
“A outra Elizabeth, a famosa, não tem profundidade ou significado para mim. É uma mercadoria que dá dinheiro”, diz ela no filme dirigido por Nanette Burstein.
Responsável pelo documentário Hillary (2020), sobre a ex-secretária de Estados dos Estados Unidos, Nanette também foi premiada em Sundance por On the Ropes (1999), sobre o mundo do boxe.
Para ilustrar no novo filme as declarações dadas por Elizabeth, a diretora usa fotografias de arquivo, vídeos caseiros, clips de filmes e trechos de entrevistas da atriz concedidas a emissoras de TV.
“Tentamos nos comportar, mas não conseguimos”
Assim que as sessões com Meryman começaram a ser gravadas, Elizabeth estava mais famosa do que nunca.
Ela vinha do escândalo de Cleópatra (1963), pelo qual havia recebido um cachê de US$ 1 milhão, o mais alto até então pago a uma atriz.
Além das filmagens tumultuadas pela troca de diretores e atores e pelos custos exorbitantes de produção, que deram grande prejuízo à Fox, o épico fez um estardalhaço por causa do envolvimento amoroso entre Elizabeth e Richard Burton — encorajando ambos a abandonarem seus respectivos cônjuges.
A atriz lembra aqui que até o seu pai a chamou de “vadia”, depois que o caso extraconjugal foi parar no jornal do Vaticano.
“Richard e eu tentamos nos comportar, mas não conseguimos”, conta a atriz. Para aumentar o barulho em torno de Cleópatra, Elizabeth ainda teve pneumonia durante a filmagem e quase morreu, precisando fazer uma traqueotomia de emergência.
“Só ganhei um Oscar porque fiz aquela traqueotomia”, afirma ela no documentário, reforçando as suas inseguranças profissionais.
Ela se refere aqui ao primeiro Prêmio da Academia que recebeu por seu filme anterior, Disque Butterfield 8 (1960), no papel da prostituta da alta classe, personagem que odiou fazer.
Ela só filmou por obrigação contratual, por dever um filme ao estúdio MGM, antes de trocá-lo pela Fox.
Mesmo com a conquista do Oscar e com o sucesso que Disque Butterfield 8 acabou alcançando, Elizabeth nunca mudou de ideia: “Eu ainda digo que é uma droga!”.