Quando se fala em golpes financeiros de proporções gigantescas, pensa-se logo em grandes e experientes investidores, correto? Ainda mais quando o assunto é algo tão novo e complicado como os bitcoins.
O ex-pastor Glaidson Acácio dos Santos e sua mulher, a venezuelana Mirelis Yoseline Diaz Zerpa, porém, fogem completamente a esse padrão.
Entre 2015 e 2021, o casal montou um dos maiores esquemas de pirâmide financeira do Brasil . Eles movimentaram R$ 38 bilhões e lesaram financeiramente, no mínimo, 89 mil pessoas.
A história desse crime está no livro Queda livre, do selo História Real, da Intrínseca. A investigação consumiu três anos de trabalho dos jornalistas Isabela Palmeira e Chico Otavio.
A apuração impecável da dupla mostra como o casal de falsários enganou milhares de famílias pobres e dezenas de “celebridades” da internet, todos atraídos pela tentação do dinheiro fácil, pela promessa de investimentos com retornos mensais de 10%.
Para os autores, Glaidson encarnou o personagem messiânico. Carioca, tímido, de origem humilde, vindo da favela carioca Cidade de Deus, foi flanelinha, garçom, pastor da Igreja Universal do Reino de Deus, até chegar ao posto de CEO da GAS Consultoria Bitcoin. Com as inicias do nome de seu criador, a “empresa” era apenas fachada para o esquema criminoso.
Em 2003, aos 20 anos, ele foi enviado para Caracas para organizar a igreja fundada por Edir Macedo na Venezuela. Lá, o rapaz conhece Mirelis, moça da mesma idade, obreira da Universal. Dez anos depois, o casal volta ao Brasil, rompido com os evangélicos — o motivo da ruptura nunca ficou claro.
Sem nada, o casal vai viver em Cabo frio, no litoral fluminense, onde ele já trabalhara como garçom. Glaidson vendia peixe na praia, enquanto Mirelis trabalhava em uma plataforma espanhola chamada El Toro, “comprando ações, prata e petróleo”. E os dois, fascinados pelos bitcoins, sonhavam com uma vida de riquezas.
Contudo, saber operar não bastava. Era preciso ter clientes, muitos clientes. Até que, em 15 de dezembro de 2014, o casal abriu o restaurante Sol & Lua, que mais tarde viraria a ser a GAS. Era o início da fraude.
Quatro dias antes, Glaidson se cadastrou na corretora FoxBit, então a maior plataforma de compra e venda de criptomoedas do Brasil. Na época, o mercado ainda era pequeno, com poucas operadoras, o que tornava tudo mais fácil. O alarde em torno da valorização acelerada do dinheiro digital também ajudou.
Se em 2015 um bitcoin valia US$ 263,07, pouco mais de dois anos depois, chegou a US$ 20 mil, uma valorização de mais de 76 vezes.
Eles testaram o esquema com colegas de serviço, parentes e vizinhos. Deu certo. Glaidson passou a circular por Cabo Frio, de bicicleta, “captando” clientes. Em pouco tempo, a cidade seria conhecida como “novo Egito”. E ele, o “faraó dos bitcoins”.
A ajuda dos ex-colegas de púlpito
Depois de uma década de Universal, logo, Glaidson convenceu seus ex-colegas de púlpito de que investir em criptomoedas era um ótimo negócio. Os líderes religiosos, por sua vez, passaram a propagar a palavra do golpista entre seus fiéis.
Glaidson conhecia as engrenagens: o rebanho seguiria seus pastores sem hesitar. Se funcionava bem na política, por que com os bitcoins e suas possibilidades de ganhos extraordinários seria diferente?
Em resumo, o “faraó” agia assim: as pessoas lhe davam um cheque no valor do investimento que seria feito em criptomoedas e ele, deixava um dele, considerando já os juros prometidos, conta uma das vítimas do casal em Queda livre.
Como escrevem Isabela e Otávio, “à revelia da cúpula da Igreja Universal, ele formou uma legião de consultores — espécie de representantes terceirizados de seus negócios — entre pastores que atravessavam a carreira pedindo dízimos, mas recebendo muito pouco da igreja em troca”.
Assim, com a união da expertise da discreta Mirelis (que já havia aplicado golpe parecido na Venezuela) e o carisma e o conhecimento de Glaidson no universo das igrejas da “teologia da prosperidade”, o casal foi construindo uma carteira de clientes crédulos.
Alguns fiéis da Universal deixaram de pagar o dízimo e passaram a investir no negócio do casal. Outros transferiram todas as economias para as mãos de Glaidson. Da região de Cabo Frio, o movimento se espalhou para todo o Brasil.
Com a explosão das criptomoedas, em 2017, a riqueza do casal também explodiu. Glaidson se vangloriava dos dois apartamentos recém-comprados, um em Brasília, cinco carros, oito escritórios e viagens internacionais, como “empresário cristão” para Israel, Itália e Portugal.
Em 2019, a movimentação financeira do “faraó” e da GAS deram mais um salto, com a entrada em caixa de R$ 478 milhões e a saída de R$ 476 milhões.
Com o crescimento exagerado dos negócios, a FoxBit encerrou a conta do “faraó” por falta de comprovantes de renda nas operações e a prática sistemática de envio de e-mails à exchange por meio de contas não cadastradas. O casal então migrou para a plataforma Bitcointoyou, vinculada à Vivar Tecnologia da Informação Ltda.
Na pandemia, a dupla fez muito, mas muito dinheiro. Os clientes, desempregados, viram na GAS a chance de garantir uma renda fixa, honrar seus boletos e, mais do que isso, ter uma nova fonte de renda.
A movimentação financeira de Glaidson quintuplicou e ultrapassou a casa dos R$ 2 bilhões. Nas redes sociais, ele ostentava Ferraris e Mustangs, entre outros modelos de luxo. Ele e a mulher queriam impressionar.
Parte da fortuna foi transferida para o exterior, para contas nos Estados Unidos, Emirados Árabes Unidos e Portugal, entre outros países.
Internamente, porém, a GAS era, claro, um caos. Para disfarçar, Glaidson criou a GAS Social, o braço assistencialista do grupo.
Dois terços do livro detalham a megaoperação Kryptos, da Polícia Federal e do Ministério Público, para pegar Glaidson e Mirelis. Queda livre foca também no desespero dos ludibriados pela dupla de golpistas e a luta deles por ressarcimento.
A denúncia inicial contra o casal é composta por um calhamaço de 381 páginas, assinado por nove procuradores. A falência da GAS, decretada em 2023, foi antecedida pelo maior processo da Justiça fluminense em números de credores.
Além de crimes relacionados ao sistema financeiro, Glaidson foi denunciado como mandante do assassinato do trader Wesley Pessano, em abril de 2021, em Cabo Frio.
Ainda sem condenação, o “faraó” está preso desde agosto de 2021, no Presídio Federal de Catanduva, no Paraná, e responde a 13 ações penais.
No dia seguinte à prisão do marido, Mirelis sacou R$ 1 bilhão em criptomoedas e fugiu do Brasil.
Um ano depois, pelas redes sociais, anunciou: não tinha dinheiro para indenizar os clientes. No início de 2024, ela foi detida em Chicago nos Estados Unidos.
Queda livre não termina com a prisão do golpista. E, sim, com a aproximação de Glaidson com líderes de uma facção criminosa e os esforços do golpista para convencer os criminosos a investir em criptomoedas.