Uma pergunta que parece simples de ser respondida, mas que diante da complexidade das relações e interações digitais, pode ter muitos significados. Para você, o que é fake?
Acredito que qualquer tipo de impulsionamento pago ou a compra de seguidores pode configurar uma manipulação da realidade. Se o atual indicador de influência é o número de curtidas, seria legítima uma influência que que fosse adquirida por compra?
Sempre que vejo alguém alcançar a tão sonhada meta de um milhão de seguidores imagino qual a porcentagem de fato é humana e resultado de interações espontâneas? O que os filósofos Aristóteles, Sócrates e Platão pensariam sobre a mudança do comportamento das pessoas nas mídias, visando agradar os algoritmos e conquistar curtidas? Como seria a análise de Freud e Jung sobre o ato de comprar seguidores para “parecer mais percebido” do que se é de fato?
Não é exagero dizer que estamos diante de um novo tipo de “ópio digital” das massas. Na sociedade algorítmica, um ponto de reflexão interessante é sobre a neutralidade. É difícil encontrar uma posição neutra quando um algoritmo persegue um objetivo em prol de um resultado. Precisamos lidar com suas consequências, principalmente se houver mau uso, excessos ou abusos. Em toda sociedade livre, junto com a liberdade, vem de mãos dadas a responsabilidade.
Um exemplo que ilustra bem o avanço dessa realidade digital manipulada são as imagens feitas pelo britânico Jack Latham ao retratar a indústria ilícita das “fazendas de cliques” no Vietnã (foto acima). Ao longo de um mês em 2023, o fotógrafo documentou essas desconhecidas operações que inflam artificialmente o tráfego para forjar interações de usuários, manipular algoritmos digitais e, claro, aumentar o lucro das plataformas digitais e seus influenciadores.
A partir de uma mão de obra muito barata, são geradas milhares de curtidas, comentários e compartilhamentos para pessoas e corporações ao redor do globo, em um sofisticado esquema de “ilusionismo”, ou melhor, “enganação”, que beira o “estelionato digital”. Algumas oficinas abrigam um verdadeiro arsenal com centenas de telefones operados manualmente, enquanto outros adotam sistemas inovadores “box farm”, onde múltiplos dispositivos funcionam interligados por meio de uma única interface de computador.
A partir de uma mão de obra muito barata, são geradas milhares de curtidas, comentários e compartilhamentos para pessoas e corporações ao redor do globo
Não é difícil pensar que a técnica já tenha sido usada para propaganda política e na disseminação de desinformação durante eleições mundo afora. É importante que haja um questionamento coletivo sobre a autenticidade do que aparenta ser popular. Com o livre acesso às mídias digitais, uma questão fundamental se coloca: qualquer um pode ser o que quiser – mesmo que seja uma mentira?
Estamos inseridos nos riscos de uma “cultura caça-cliques”, inclusive com as distorções que acompanham essa nova conjuntura. Um dos primeiros sinais de que vivemos uma situação no mínimo estranha é quando identificamos os anúncios de “compra de seguidores” e “compra de curtidas”. A impressão é que uma pessoa com poder econômico para realizar esses investimentos consegue transformar sua credibilidade nas redes.
Como tudo tem a ver com indústria, se entendermos que é um modelo de negócios lícito, então a questão paira sobre a transparência. Afinal, o público tem o direito de saber se está interagindo com pessoas ou com máquinas (que se passam por pessoas) do outro lado da tela. Está mais no direito de escolha, a partir de informações claras, do que na proibição.
Mas um ponto que sempre desafia a todos é: “quem vigia o vigia”? Será muito poder nas mãos de poucos? Afinal, é elevado o risco de haver algum nível de manipulação no uso dos algoritmos dentro das plataformas que pode distorcer não apenas a realidade, mas também direcionar a opinião. E isso, por certo, é uma ameaça à liberdade e à democracia, como já abordado por Cathy O´Neil em sua obra “Algoritmos de Destruição em Massa”.
Por isso, é tão relevante o debate sobre como estabelecer regras claras que possam prever limites entre o que é lítico e ilícito. Onde começa a haver abuso e quais as penalidades específicas e distintas, proporcionais para cada um dos atores envolvidos, conforme sua participação e responsabilidade.
Mecanismos de transparência nas redes sociais são fundamentais para própria sustentabilidade da tecnologia e ajudam a prevenir danos. Bem como é preciso que haja a atuação colaborativa, proativa e preventiva das plataformas. Estamos numa sociedade tecnológica algorítmica, em que há uma enorme dependência das big techs, que desempenham um papel essencial dentro deste ecossistema.
Apenas com a participação conjunta da Sociedade Civil, do Estado e do mercado vai ser possível desenvolver uma sociedade digital e robótica que seja ética, segura e sustentável. Pelo bem da coletividade, empresários e lideranças de tecnologia precisam ter a preocupação de desenvolver tecnologias responsáveis, que possam ser usadas de forma construtiva e pacífica e assim vamos juntos levar a humanidade para outro nível.
* Patricia Peck é CEO e sócia-fundadora do Peck Advogados. Com 46 livros publicados, é professora de Direito Digital da ESPM. Conselheira nomeada para o CnCiber (mandato de três anos). Foi Conselheira Titular do Conselho Nacional de Proteção de Dados (CNPD).