Os “vários mergulhos” de Lygia Pape no neoconcretismo — e no mar em dias de chuva

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Quando começava a chover, Lygia Pape telefonava para Hélio Oiticica — ou ele para ela.  A ligação era para combinar um mergulho no Arpoador, na Zona Sul carioca. “Mas tinha de ter raios”, diz a artista, no livro Lygia Pape — Intrinsecamente Anarquista, de Denise Mattar. “Aquilo era um prazer enorme. O ideal era ficar batendo papo dentro d’água com aquela tempestade caindo.” Os dois, segundo ela, não morreram por pura sorte.

Agora, a mostra Ação-dentro, em cartaz na Almeida & Dale, em São Paulo, convida para um mergulho no trabalho de Pape (1927-2004). Um mergulho mais seguro, mas não menos fascinante (e delicioso) do que os banhos de mar no Arpoador, em dias de chuva.

Nascida em Nova Friburgo, interior fluminense, Pape é figura fundamental na arte brasileira da segunda metade do século 20. Ao lado de Oiticica (1937-1980) e Lygia Clark (1920-1988), Pape foi um dos expoentes do movimento Neoconcreto, cujo manifesto foi redigido, em 1959, pelo escritor e poeta Ferreira Gullar (1930-2016).

Concebida junto com a arquiteta Tatiana Durigan, a expografia leva o espectador a circular por um espaço imersivo, que lhe provoca os sentidos — um mergulho semelhante ao proposto por Pape através de seu trabalho, explica a curadora Ana Avelar ao NeoFeed.

Ação-dentro traz 43 trabalhos, dentro de uma seleção muito bem amarrada — um passeio entre as principais vertentes artísticas exploradas por Pape. “Fizemos um recorte do que havia no acervo da galeria e em coleções particulares”, diz ela.

Sem grandes intervenções arquitetônicas, Tatiana resolveu o espaço usando cor e luz, como Pape, em suas obras.

A luminosidade geral da sala foi rebaixada, para que uma iluminação focal destacasse as obras. E as paredes foram pintadas com as cores predominantes em algumas das peças expostas.

“Nossa ideia foi trabalhar três conceitos: construção, corpo e sentido. Os trabalhos presentes têm uma estrutura geométrica organizada — Pape era muito gráfica e muito geométrica”, diz Ana. “Mas isso não quer dizer que ela não somasse aos trabalhos a experiência humana.”

A artista casou cedo, aos 22 anos, com o químico Gunther Pape, para sair de casa.

Livre das aulas de piano impostas pela família, às quais se dedicava cinco horas por dia, ela foi para as artes visuais. Em 1951, passou a frequentar os cursos livres do Museu de Arte Moderna (MAM), do Rio, onde foi aluna de Fayga Ostrower (1920-2001) e Ivan Serpa (1923-1973).

Três anos depois, o professor fundaria o Grupo Frente, marco da abstração geométrica no Brasil, do qual faziam parte Pape, Oiticica e Clark — além de Aluísio Carvão (1920-2002), Abraham Palatnik (1928-2020), Décio Vieira (1922-1988) e Franz Weissmann (1911-2005).

“Uma coisa assim sensível”

Com o grupo, ela viveu um dos momentos mais importantes da história da arte brasileira: a 1ª Exposição Nacional de Arte Concreta, entre o final de 1956 e o início de 1957, com mostrar no MAM, de São Paulo, e, no Ministério da Educação e Saúde, no Rio.

Sem título, da série “Tecelares”, xilogravura sobre papel japonês: “A única coisa que me permitia era deixar a porosidade da madeira aflorar no negro como uma pequena vibração”, explicou a artista (Crédito: Sergio Guerini)

“A ideia de produzir livros de arte, ou melhor, livros-poemas está ligada à vontade de invenção de romper os limites das categorias”, dizia a artista. Na imagem, obra sem título, da série “Livro do Tempo”, de 1965, têmpera sobre madeira (Crédito: Sergio Guerini)

Cena do balé Neoconcreto, idealizado por Pape, em 1958, confirmando a teoria dos neoconcretistas de que a a obra de arte deveria transcender o lugar destinado ao objeto de arte (Crédito: Reprodução mutualart.com)

Entre as 43 obras expostas na mostra “Ação-dentro”, está a série “Caminhos”, na parede ao fundo (Crédito: Sergio Guerini)

Essa obra é da série “Relevos”, realizada entre 1954 e 1956, em têmpera sobre madeira (Crédito: Sergio Guerini)

A obra “Volante”, de 1999, em ferro banhando em cobre, é um dos exemplos da heterogeneidade da trajetória da artista (Crédito: Sergio Guerini)

Entre as obras de Pape, que exaltavam as formas geométricas, a racionalidade e a ausência da “pincelada do artista”, gravuras ressaltam o aspecto orgânico dos veios da madeira, da matriz que lhe serviram de matriz. Da série Tecelares, duas dessas gravuras estão em Ação-dentro.

“O traço é todo controlado, como são os cortes e os fios da madeira. É como se fosse um registro o mais rigoroso possível”, explicou a artista. “A única coisa que me permitia era deixar a porosidade da madeira aflorar no negro como uma pequena vibração. Uma coisa assim sensível que surgia do próprio material.”

O transparecer daquela “coisa assim sensível” é um dos detalhes que evidenciam a diferença entre os concretos cariocas e paulistas. Essa aproximação da arte com a vida fez a turma do Rio romper com a de São Paulo e iniciar o movimento Neoconcreto.

Para os cariocas, a obra de arte deveria transcender o lugar destinado ao objeto de arte. E Pape levou isso ao extremo ao criar o balé Neoconcreto. Apresentado pela primeira vez no Teatro Copacabana, em 1958, o espetáculo foi conduzido por bailarinos do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, “vestidos” com sólidos geométricos, ao som de uma música atonal.

A partir de suas experiências com o grupo Neoconcreto, uma nova categoria passou a habitar os trabalhos de Pape: os livros. Mas não são os livros tradicionais. “A ideia de produzir livros de arte, ou melhor, livros-poemas está ligada à vontade de invenção de romper os limites das categorias (pintura, gravura, escultura, poema, etc.)”, explicou Pape.

Intolerante ao “poder e hierarquias”, a artista se definia como “intrinsecamente anarquista”.

“Passarinho na gaiola”

Na exposição, há obras muito distintas que fazem parte de séries classificadas como “livro”. Na série Caminhos (1963/1976), sobre uma base de madeira pintada de branco sobressaem, de uma forma aparentemente desordenada, quadrados de diferentes alturas com o topo pintado de preto.

O trabalho se relaciona com o início da experiência da artista como professora do curso de arquitetura da Universidade Santa Úrsula. Pape levava os alunos às favelas e ao centro do Rio de Janeiro, propondo a eles caminhadas e intervenções para que se relacionassem com a cidade fora do ambiente acadêmico.

O livro do tempo, de 1965, segue a mesma lógica escultórica, mas cada um dos objetos (ou páginas) representa um dia do ano — na exposição é possível ver oito dos 365.

As instalações Crime e Castigo e Silencioso, há muito tempo não expostas, registram a inserção de palavras nas obras de Pape. “Ela entende que determinadas palavras ajudam a ativar os sentidos dos espectadores”, aponta a curadora.

Duas cubas brancas, com um líquido vermelho, em uma está escrito “crime”; na outra, “castigo”. “Apresentamos essa obra, associada à visão política de Pape que vivenciou a cultura e a repressão brasileira durante a ditadura militar”, ressalta Ana.

Apenas no fim da década de 1990, Pape tornou pública sua prisão, em 1973. Durante a ditadura militar, ela dava apoio logístico às pessoas que “estavam sendo procuradas e fazendo aventuras, assaltos”, como já relatou.

A artista estava saindo de casa quando foi detida, por dois homens: “Passarinho na gaiola”, anunciaram, ao prendê-la.

Ela foi jogada em um cela, com porta de “geladeira”, como descreveria a artista, mais tarde: “Tinha um ruído tocando o tempo todo — uma coisa de enlouquecer”. Foram quase dois meses no cárcere.

Ação-dentro é arrematada com Sedução II. Pape explora displays de anúncios, que giram para mostrar duas propagandas em looping, para estampar as palavras “vai” e “vem”. O movimento dos verbos sugere um balanço, tal qual o balanço do mar.





Fonte: Agência Brasil

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